sexta-feira, 11 de novembro de 2011

ÔNIBUS 174

ÔNIBUS 174
Eugênio Bucci

“Santa TV, olhai por nós”, copyright Jornal do Brasil, 12/12/02
O documentário Ônibus 174, que entrou recentemente em circuito comercial, já foi elogiado por muitos motivos diferentes. E justos. Destaco, entre tantos outros, os méritos jornalísticos do longa-metragem (mais de duas horas!) do diretor José Padilha. Não são méritos jornalísticos quaisquer. São méritos que alcançam uma dimensão estética tão grandiosa que chega a ser assustadora.

Ao narrar o seqüestro do ônibus urbano 174, no Rio de Janeiro, que aconteceu no dia 12 de junho de 2000, o filme consegue ser meticuloso na reconstituição de um episódio particular e preciso no diagnóstico geral. Nisso reside boa parte de sua grandeza - informativa e estética. Detalhe por detalhe, ele reconstitui a tarde em que uns poucos passageiros foram transformados em reféns pelo assaltante Sandro do Nascimento.

O perfil do personagem central é apresentado de modo engenhoso. Passagens de sua biografia vão se encadeando com os lances do seqüestro. Lentamente, as coisas parecem ter uma lógica.
O menino pobre que, aos 6 anos, viu a mãe morrer esfaqueada, que fugiu de casa para virar habitante da rua e que, anos depois, milagrosamente, sobreviveu ao massacre da Candelária, torna-se um adolescente a mais, um como tantos outros a perambular de presídio em presídio, numa carreira desgraçada feita de crimes menores, tormentos, vícios. O incrível é que o documentário vai demonstrando que sua trajetória pessoal, que não teria rumo nenhum, não teria conclusão nenhuma, tem sim um grande sentido narrativo: a fatalidade do final espetacular.

Sim, espetacular. O ônibus rendido e paralisado por Sandro logo é cercado pelas câmeras de TV, todas ao vivo e, claro, pelos policiais. É um superespetáculo. A partir daí, sua tragédia acontecerá diante dos holofotes, dos microfones, para deleite do grande, imenso e pouco respeitável público.
Ali está o sentido de sua vida: a tragédia. ‘Tá pensando que isso aqui é filme de ação?’, ele grita da janela. Ele que - o filme mostra - sonhava com a fama. Ali se consumou o sentido maior de sua vida sem sentido. Diante das câmeras, no instante em que tenta se entregar, ele mata uma refém que não queria matar. Nos minutos seguintes, morre asfixiado nas mãos de dois policiais. A tragédia, escrita pelo acaso e pelo caos, passa na tela como se fosse uma obra-prima de ficção. Há nela uma história muito mais ampla que o episódio particular.

Por aí é que entra o diagnóstico geral que o documentário desvela: a polícia é um aparato definido pela falta de equipamento, pela falta de empenho, pela falta de preparo e pela falta de coração. A polícia é parte da estrutura social baseada na miséria e na violência: ela não é um antídoto contra tudo isso, mas um fator de perpetuação disso tudo. Ônibus 174 acerta no particular (no episódio que narra) e no geral: é uma reportagem devastadora e incontestável. A tragédia de um Sandro anônimo, de milhões de seres invisíveis como ele, revela a tragédia do Brasil inteiro.

Seres invisíveis. Não é por acaso que falo neles. O tema da invisibilidade é, na minha opinião, a melhor virtude do documentário. Entre os entrevistados do filme, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro, insiste bastante nesse ponto. Para Soares, os seres que, de tão pobres, acabaram condenados à invisibilidade são pessoas impossibilitadas de despertar qualquer emoção que seja nos cidadãos estabelecidos. Segundo ele, a nossa sociedade aprendeu a conviver com as multidões de invisíveis, como as crianças de rua, como se todos fossem um dado da natureza, um fenômeno normal do cotidiano.

A sociedade simplesmente foi deixando de vê-los. Os seres invisíveis não dispõem de nada que lhes permita causar reações nos cidadãos que têm casa, que têm dentes, que têm documento. Para eles, a arma é muitas vezes o único acesso à visibilidade, pois a arma lhes ajuda a despertar no outro uma emoção: o medo. À luz da tese de Luiz Eduardo Soares, que acaba se convertendo num pilar ideológico do documentário, Sandro nada mais é que um ser invisível tentando alcançar um lugar passível de ser olhado. Munido de um revólver, ele procura anunciar que é alguém. Mais ainda: procura proclamar que é alguém para as câmeras de TV, isto é, para o mundo.

A imagem de Sandro, berrando para as objetivas com o rosto para fora da janela do ônibus lembra um afogado que procura pôr a boca para fora d’água em busca de ar. Sandro busca a visibilidade como quem busca o ar, como quem busca a vida. Por isso, aliás, ele sonhava com a fama. Somente a fama, por mais breve que fosse, poderia pacificá-lo. Para a velha senhora que lhe cedeu um cômodo para morar, aquela a quem ele tratava como mãe adotiva, prometera que ficaria famoso e que daria jeito na vida. O pobre sobrevivente da Candelária queria apenas ser visto, queria ser visível, queria ser olhado pelos semelhantes e, se possível, pela entidade que olha por nós, que é a mídia.

Eles, os invisíveis, sabem intuitivamente que a mídia é menos importante para ser vista e muito mais importante para nos ver. Ser visto pelas câmeras de TV equivale a ganhar o direito à existência. A elas, à TV e à mídia, a sociedade implora, todos os dias: olhai por nós. Agora e (ou) na hora de nossa morte. Sandro, quando morreu asfixiado, estava deitado no fundo de um camburão. Longe dos holofotes. Morreu entregue de volta à escuridão da qual jamais deveria ter se atrevido a fugir.”

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